Em homenagem ao ano do centenário de um dos maiores nomes da literatura brasileira, achamos uma artigo que fala do encontro de uma das obras de Clarice com o jazz e vamos dividir aqui para todos vocês!
* Texto abaixo é reproduzido do blog Baú de Fragmentos e escrito por Caio Ricardo Bona
O curso de Letras da UNESPAR, campus de União da Vitória, promoveu um encontro literário em homenagem à Clarice Lispector, enfocando não só o aspecto filosófico e jornalístico de sua obra, mas também musical, traço ainda pouco explorado na leitura de seus textos. O evento, intitulado “Aqui jazz Clarice”, contou com uma mesa-redonda formada pelas professoras Angela Farah e Renata Noyama, bem como com apresentações musicais do grupo 6 Assis e participação de acadêmicos lendo fragmentos de livros da escritora.
É perceptível a prática de um diálogo profundo entre a escritura de Clarice Lispector e o universo de outras artes, como a pintura, a escultura e a música. Em Paixão segundo G.H., publicado em 1964, a narradora é uma escultora que se debate sobre questões existenciais, imprimindo em suas páginas uma complexa e rica reflexão sobre a condição humana. Em Água Viva, ficção que Cazuza afirmava ser seu livro de cabeceira (ele confessou ter lido a obra mais de uma centena de vezes), a narradora é uma pintora que troca pinceis e tintas por palavras, deparando-se com a impossibilidade de substituir uma experiência por outra. Em sua vã tentativa de captar o que ela chama de o “instante-já”, o “é da coisa”, ou “it”, a narradora nos apresenta intensas páginas de uma magia que está para além da literatura. Certa vez, Guimarães Rosa afirmou que lia Clarice não para a literatura, mas para a vida. Sim, a obra de Clarice ultrapassa o próprio conceito de literatura, situando-se como um corpo estranho no modernismo brasileiro, e colocando-se no patamar da bruxaria. Aliás, nos anos 70, a escritora chegou a participar de um congresso de bruxaria na cidade de Bogotá, na Colômbia.
A única gravação de Cazuza interpretando a música "Que O Deus Venha", parceria sua com Frejat, em um show realizado ao lado da cantora Ângela Rô Rô, no dia 19 de fevereiro de 1989, no Morro da Urca, Rio de Janeiro. A música é uma adaptação de um texto de Clarice Lispector, presente em seu livro "Água Viva", de 1973.
Magia, alquimia ou bruxaria são palavras que talvez definam melhor o universo artístico de Clarice. E tal experiência é impossível de ser interpretada objetivamente. Ao longo dos anos, lendo com meus alunos e alunas a sua obra, assisto nas aulas aos efeitos dos mais variados que vão desde o descaso de quem leu e não “sentiu” até aqueles que revelam profundo encantamento, medo, paixão, e a ativação ou transformação de sensibilidades. Fazendo parte daqueles escritores de quem se diz “ame-o ou deixe-o”, Clarice me convida para a leitura em momentos específicos da minha vida. Às vezes, fico meses sem ler uma linha sua sequer, em outros, avidamente, procuro suas pegadas, suas palavras, ou por elas me deixo encontrar. Eis o mistério da palavra poética. Ultimamente, ando de novo encantado com essa ucraniana que se fez brasileira e que afirmou certa vez ter feito da língua portuguesa “sua língua interior”. Tenho pensado muito na música que se depreende de sua escritura, como tema ou ritmo, sugerindo que essa arte também faz da parte da sua.
Em Perto do Coração Selvagem, o pensamento é música se criando. Nele, Clarice escreveu: “A música era da categoria do pensamento, ambos vibravam no mesmo movimento e espécie. Da mesma qualidade do pensamento tão íntimo que ao ouvi-la, este se revelava.” A aproximação da música à escrita ou ao pensamento é recorrente em sua obra. Numa das passagens do já citado Água Viva, Clarice compara a escrita automática de seu texto ao jazz, gênero musical pautado pelo movimento e improvisação: “Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. Mas que mal tem isso? improviso como no jazz improvisam música, jazz em fúria, improviso diante da plateia”. Em Um sopro de vida, escreveu, ou melhor, cantou: “Estou ouvindo música. (...) Meu vocabulário é triste e às vezes wagneriano-polifônico-paranoico. Escrevo muito simples e muito nu. Por isso fere. Sou uma paisagem cinzenta e azul. Elevo-me na fonte seca e na luz fria”.
Interpretar é uma palavra bastante usada nas aulas de literatura, bem como no universo da música e do teatro. Interpreta-se um texto, assim como interpreta-se uma peça musical ou teatral. Não aprecio a palavra no sentido usado nas aulas. Textos literários não foram escritos para serem interpretados, como quem “descobre o que o autor quis dizer” ou como quem decifra um segredo para, então, ele deixar de existir. O enigma sempre perdurará. A não ser que o leitor interprete o texto como quem toca uma música à medida que lê, não para decifrar, mas apenas para pôr em movimento seus sons, proliferando seus mistérios. Ler Clarice em voz alta, aliás, é uma delícia. Desconfio que uma linda passagem do início de Água Viva nos ajude a (in)definir melhor essa ideia: “Não se compreende música: ouve-se. Ouve-me então com teu corpo inteiro”. Assim como a música, não se compreende Clarice, mas lendo-a e ouvindo-a, sentimos sua escritura com nosso corpo inteiro.
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