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'Encontro a vida a partir do piano e o piano a partir da vida', divide o músico Amaro Freitas

O músico conversou com a redação do Diário do Nordeste sobre resistência, filmes de jazz e como enfrentou o contexto da pandemia por meio da imersão na ancestralidade e no instrumento de trabalho


Foto: Helder Tavares

A covid-19 segue devastadora e o Brasil contabiliza mais de 300 mil mortos. Não bastasse a dor de inúmeras famílias, parte da população testemunha, chocada, uma face do País que reverbera a ignorância e diz equivocadamente não à ciência. Diante desse turbilhão nefasto, a arte foi decisiva para o pianista Amaro Freitas.


"Infelizmente, no início da pandemia, estava sem criar nada. Chegou o momento no qual percebi que a música era o escape". O contexto era difícil. Como a maioria esmagadora dos trabalhadores e trabalhadoras da cultura, o pernambucano parou de trabalhar. A turnê do segundo disco do Amaro Freitas Trio, "Rassif", estancou.


O medo e a indignação passaram a ser combatidos com mais estudos. A opção era profundar a pesquisa no instrumento, nesse lugar da ancestralidade, nas raízes do Brasil excludente. O destino foi o estúdio.



Álbum Rasif


"Comecei a compor, tentar trazer o sentimento daquela hora para o piano", divide. Desse intervalo temporal, marcado pela reconexão, Amaro o define enquanto uma possibilidade de amadurecimento.


A citação envolve a forma de tocar com os companheiros de trio, Jean Elton (contrabaixo acústico) e Hugo Medeiros (bateria). Na cadência de compreender mais intensamente as composições. Inserir essa linguagem no contexto do movimento histórico da África com o Brasil. Atravessa entender que seus antepassados existiram para que ele pudesse existir.



Hugo Medeiros (bateria), Amaro Freitas e Jean Elton (contrabaixo): descontração e amizade nos palcos

O toque no piano mudou, garante. Faz vibrar diferente agora. O resultado é fértil e pulsante. Um terceiro disco do trio está pronto e o álbum solo é real. Ambos chegarão no tempo certo e demarcarão estes dias de intensa reflexão.


"Percebo uma continuidade do trabalho enquanto trio. Não é pior, ou melhor. É de intimidade, conhecimento e evolução das percepções e sensibilidades", traduz o pernambucano. Nas cordas contra o difícil momento dos brasileiros menos favorecidos, o artista projeta no jazz um farol de resiliência e sabedoria.


"Encontro a vida a partir do piano e o piano a partir da vida. Quero deixar isso cada vez mais equilibrado”.

Sem citar os nomes dos profissionais envolvidos, Amaro revela que convidados cearenses estão no trabalho. "Uma galera que fez um trabalho incrível", diz. Agora é aguardar a nova leva criativa e imersiva do músico.


Amaro Freitas Trio toca "Rasif" no Jazz at Lincoln Center (NY)



Alma na Tela


O músico é protagonista do documentário "Amaro Freitas - O piano como extensão da alma". O curta-metragem biográfico foi guiado pela jornalista Suzanna Borba e estreou na 12ª edição do "In-Edit Brasil - Festival Internacional do Documentário Musical". A iniciativa é uma das mais importantes do País por atuar na divulgação de filmes que iluminam inúmeras vertentes musicais.


Amaro divide os filmes prediletos entre aqueles inseridos na amálgama do jazz e imagem em movimento. As cinebiografias de Ray Charles ("Ray", 2004) e Charlie Parker ("Bird", 1988) trouxeram histórias pertinentes acerca de criadores complexos. "Por Volta da Meia-Noite" (1986) contou com o gigante Dexter Gordon na composição sensível de um músico divido entre a paixão pela arte e a morte.


"Soul", na ótica do músico, destaca-se por oferecer temas urgentes ao contemporâneo. Do valorizar as pequenas coisas da vida, da importância do diálogo e do voto de confiança. O momento no qual Joe Gardner (Jamie Foxx) toca o piano e adentra outra realidade ou plano espiritual é bastante simbólico. "O jazz tem essa coisa da sonoridade que liberta, que improvisa, de adentrar o mais puro que existe no ápice, ele ('Soul') consegue chegar nesse formato".


Milton Nascimento e Criolo feat. Amaro Freitas - Cais


Já na seara dos documentários, impossível esquecer do seminal retrato de Thelonius Monk em ("Thelonious Monk: Straight, No Chaser"). Amaro detalha o quanto a câmera foi capaz de captar a essência do improviso a partir das versões tocadas pelo mestre do piano. A lista inclui Coltrane (Chasing Trane: The John Coltrane Documentary”) e Quincy Jones (“Quincy”). Já o recente "A Voz Suprema do Blues" (2020) é considerado "incrível por revelar um dia da realidade do músico do jazz", afirma o entrevistado.


A competência da obra reside em esmiuçar os primórdios destes músicos, o “apartheid” e ter uma mulher protagonista dessa trama. Amaro discute o quanto o trabalho do diretor xx denuncia a apropriação do gênero pela indústria fonográfica.


"Estas músicas são lançadas só por pessoas brancas. A tradução do jazz é de uma forma roubada. O rock foi feito por negros, mas o 'rei' é Elvis. Sinatra 'é grande cantor de jazz'. E Nat King Cole, fica onde?"

As observações do pianista concentram luz na proposta de uma obra centrada nas discussões do contemporâneo. Impossível sair ileso e executar um jazz descolado do embate. Vida e piano são sinônimos. "A arte traz essa subjetividade, leva para um lugar suspenso. De estar flutuando sobre a realidade. Traz a crença de dias melhores mesmo no caos", finaliza Amaro Freitas.



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